12/07/2016

Elogio do cinema e da filosofia

Na produção americana de 2015, um dos falhanços comerciais que mais me desconcertaram foi o de The Walk, de Robert Zemeckis (entre nós lançado com o subtítulo O Desafio). Isto sem esquecer, claro, que não estou à espera de que os filmes que mais me entusiasmam sejam sucessos automáticos nem vejo a história dos filmes como uma odisseia "confirmada" ou "desmentida" pelos números das bilheteiras.

Acontece que The Walk parecia conter elementos mais do que suficientes para mobilizar muitos espectadores. Agora que o filme está disponível numa excelente edição em Blu-ray (com alguns extras verdadeiramente úteis para compreender a ambição e a complexidade do projeto), vale a pena voltar ao assunto. Isto porque The Walk evoca uma genuína epopeia, protagonizada pelo francês Philippe Petit, artista do arame que, a 7 de agosto de 1974, percorreu um cabo que ligava as Torres Gémeas do World Trade Center, em Nova Iorque (a proeza foi também abordada por James Marsh no filme Homem no Arame, Óscar de melhor documentário referente a 2008).

Para além das incontornáveis ressonâncias emocionais e simbólicas de qualquer evocação do World Trade Center, o filme ilustra também a evolução de Zemeckis, por certo um dos nomes da área da realização conhecido de muitos espectadores, quanto mais não seja através da célebre trilogia Regresso ao Futuro (1985/1989/1990). Mais do que isso: num contexto mediático saturado de referências mais ou menos anedóticas aos "efeitos especiais" de muitas mediocridades protagonizadas por "super-heróis", foram muito poucos os que valorizaram (ou apenas reconheceram) o prodigioso trabalho técnico que envolveu a encenação de Petit, interpretado pelo excelente Joseph Gordon-Levitt, em cima do arame.

Há alguns fatores que poderão ajudar a explicar certas formas de indiferença face a The Walk. A meu ver, o mais significativo (e menos analisado) está no desgaste comercial e jornalístico, ao longo das últimas décadas consumado por um marketing apostado na infantilização do imaginário cinematográfico. De facto, The Walk é um filme realmente adulto, não porque não possa ser visto por espectadores muito jovens, antes porque coloca em cena personagens com projetos, desejos e contradições que não podem ser reduzidos a um mundo bidimensional e, é caso para o dizer também com alguma ironia, sem profundidade.

No limite, creio que Zemeckis toca numa temática que, em boa verdade, vai circulando pela sua filmografia - penso, em particular, em Forrest Gump (1994), Contacto (1997) e O Náufrago (2000). A saber: até que ponto um ser humano, ao desafiar os seus próprios limites físicos e existenciais, apela a uma dimensão que, transcendendo o palpável, prenuncia o sagrado? Eis uma interrogação genuinamente filosófica que, por princípio, o marketing rejeita, ignorando que a filosofia começa na estranheza da vida comum. No arame ou com os pés no chão.

Fontes: http://www.dn.pt/opiniao/opiniao-dn/joao-lopes/interior/elogio-do-cinema-e-da-filosofia-5276500.html

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