25/07/2016

Poesia e filosofia, ontem, hoje e amanha

“No princípio era o Verbo”, diz a abertura do Evangelho de João sobre a criação do universo. O cosmos sobre o qual nos debruçaremos doravante, todavia, não o bíblico, mas os poético e filosófico. E em relação a estes, portanto, que trouxemos frase do apóstolo. A poesia e a filosofia têm um extenso ontem a ser rememorado; um justo hoje a ser intuído; e um aberto amanhã aberto diante do qual podemos apenas vaticinar. Pensar a poesia e a filosofia, a relação de cada uma delas com a vida e com o tempo, e sobretudo delas duas entre si, eis o que este ensaio pretende fazer.

Sabemos que a poesia precedeu a filosofia. Então, se “no princípio era o verbo”, esse verbo primordial foi poético. Muito antes de homens filosofarem naquelas ilhas gregas da antiguidade, Hesíodo, um camponês que vivia nas proximidades de Téspias, na Beócia, em suas próprias palavras, uma aldeia amaldiçoada, cruel no inverno, penosa no verão, jamais agradável, já poetizava sobre a vida simplesmente ao dizê-la. Homero, autor da Ilíada e da Odisseia, foi outro antigo grego que verbalizou poeticamente o mundo.

E a poesia bastava! Mais do que isso, fazia sobrar interfaces para a humanidade entender o real e para este compreendê-la. Tanto que os primeiros homens que, posteriormente, foram chamados de “os primeiros filósofos”, quais sejam, os pré-socráticos, muitos deles se valiam do assaz naturalizado estilo poético para dizerem da realidade por uma via outra que não estritamente poética. Estes, todavia, poetas puros não eram mais.

Essa hibridismo entre poesia e filosofia fica claro no poema do filósofo Parménides de Eléia, Sobre a natureza, no qual o pré-socrático, valendo-se da tradição poética de seu tempo e fazendo com que seres míticos, velhos personagens da poesia, iniciassem a conversa com o leitor, apresentando no entanto a questão filosófica da qual trataria sem, digamos assim, causar estranheza. Não esqueçamos de que estamos falando de uma sociedade absolutamente tradicional, onde a mudança era vista com maus olhos Tanto chamavam-na de corrupção!

Entretanto, imediatamente ao preâmbulo poético, Parménides, sem dó nem piedade, revoluciona o mundo discursivo, e porque não dizer a história da humanidade, ao escrever argumentativamente, num ato de invenção da prosa lógica que dispensou não só os elementos míticos como o estilo poético de forma geral. A passagem desse segundo movimento do poema parmenídico que melhor representa essa revolução é: “o que é, é, e não é para não ser ... o que não é, não é, e tem de não ser”.

Não obstante, antes de dizermos que essa invenção do pensador de Eleia foi uma apunhalada no coração da poesia, o importante aqui é ressaltar apenas que ela perdia o seu longevo e exclusivo belvedere a partir do qual humanidade e realidade eram mediados. Doravante, nunca mais o pensamento se restringiria apenas ao modo poético para dizer o que era e o que se passava como mundo.

Parmênides, no entanto, foi um revolucionário deveras respeitoso, pois mesmo tendo demarcado uma rígida fronteira entre os dois modos de dizer o real, a poesia e a prosa argumentativa, na terceira e última parte de seu “poema filosófico” o grego faz uma cosmologia que mistura os dois estilos anteriores, como que para tentar juntar novamente o que acabara de cindir tão revolucionariamente. Depois dele, porém, a filosofia como a conhecemos não se privou de trilhar um caminho cada vez mais apartado da poesia e cada vez mais próximo da lógica.

Antes de separarmos de vez poesia e filosofia, cabe todavia lembrar dos sofistas, homens que circulavam pela Grécia antiga, cuja produção intelectual era algo entre poesia e filosofia. Desde sempre híbrida, a sofistica dizia o que se passava com o homem e com seu mundo. De um lado, com uma liberdade aparentada à poesia. Porém, de outro, com uma objetividade assaz pragmática. Com efeito, os sofistas criavam e vendiam discursos de verve poética, contudo estrategicamente políticos, que até o vertical verbo platónico eram confundidos com filosofia, mas que depois jazeram estigmatizados.

O pai da filosofia negava pertinência, não só às produções sofisticas, mas também às poéticas, alegando que estas não tratavam do que realmente importava, ou seja, daquilo que é necessária e universalmente válido, isto é, o Ser. Para o daddy-cool da filosofia, as ideias: o real mais real do que qualquer outra coisa, não podem ser conhecidas e fruídas de outro modo senão filosoficamente. E para Platão, poesia e sofistica, ao tentarem falar das coisas, quando muito dizem apenas de suas corrupções terrenas, uma vez que não as atingem em suas origens, isto é, nas alturas celestes e ideais onde elas vivem eternas e incorruptíveis.

Como sabemos, o idealismo platónico nega a sensibilidade e o mundo dinâmico que ela revela aos homens, pois tudo o que é sensível diz apenas daquilo que será corrompido pelo devir. Expressar-se a partir do que percebemos sensivelmente, para Platão, outra coisa não era que ler a sentença de morte dos objetos dessa expressão. A realidade imediata, material, sensível, no entanto, era a matéria prima com a qual os poetas e os sofistas se aventuravam. Mas para Platão o voo que alçavam não se aproximava do que mais importava, das ideias das coisas a respeito das quais falavam.

Tanto que em vários de seus famosos diálogos Platão se empenhou em mostrar a limitação dos poetas e dos sofistas. Em Hípas Maior, evidenciou a impertinência do fazer sofístico de modo contundente. E na sua maior obra, a República, o filósofo não se privou de banir a poesia de sua sociedade ideal. Justiça seja feita, Platão poupou apenas a poesia homérica, e isso porque ela relatava grandes feitos heróis passados dignos de sobreviverem enquanto exemplos aos gregos. Dizia Platão que qualquer outra poesia causava apenas sensações, e mais afastava do que aproximava o homem da verdade e da virtude, objetos excelentes da sua República.

Com Platão, portanto, temos a ereção de um muro intransponível onde Parmênides havia apenas deitado uma fronteira. Diferente do pré-socrático, o pai da filosofia não aproximou filosofia e poesia em cosmologia alguma, uma vez que avizinhá-las apenas corromperia a sua filha preciosa, a filosofia. A poesia, marginalizada, só mesmo travestida de tragédia manteve lugar cativo na sociedade grega. Porém, em se tratando de verdade, a poesia nada mais podia.

Aluno de Platão, Aristóteles comprou a filosofia absolutamente. Aqui todavia vale ressaltar que o pupilo foi mais filosófico que o mestre, uma vez que a dialógica platónica carregava um certo verniz poético que de forma alguma reluziu no racionalismo aristotélico, profundamente mais prosaico, chamado por muitos de tedioso até. Talvez a sensação de tédio que o racionalismo de Aristóteles cause seja a marca da distância instituída entre poesia e filosofia.

Digna de nota é a diferença entre Platão e Aristóteles no tratamento da poesia. Aquele, como vimos, condena-a na República. Todavia, na forma de diálogo essa condenação ainda é de certa forma poética porque dinamicamente encarnada na vivacidade das vozes e gostos de Sócrates e seus companheiros. Já Aristóteles, na sua Poética, mesmo na intenção de apologizar a poesia, o faz racional, metódica e tecnicamente, tratando dela como se de política ou de biologia fosse.

Saltando da antiguidade ao medievo, veremos que na chamada Idade das Trevas a poesia não reconquistou lugar excelente algum. O mundo medieval-cristão não podia deixar-se seduzir pela poesia sem o terrível risco de incorrer em pecado devido à dimensão sensual que ela abre. Ademais, nenhuma poesia poderia, nem deveria estar no lugar da palavra de Deus. Prazeres estéticos como os que a poesia é capaz de causar eram a senda para se desencaminhar do paraíso prometido no fim de uma vida de privações.

A poesia e a sensibilia que ela envolve, portanto, deveriam permanecer marginalizadas no mundo medieval. Até mesmo a filosofia, por ser um método humano de se alcançar a verdade, desafiava os preceitos cristãos, uma vez que o caminho, a verdade e a luz eram tão somente Deus, e só através da palavra dEle poderiam ser alcançados. Para sobreviver na Idade Média, a filosofia como os gregos a faziam teve se ser mutilada. As obras de Santo Agostinho e de São Tomás de Aquino, por exemplo, levaram Platão aonde ele sequer poderia imaginar. Muitos dizem que o platonismo no medievo foi espécie de estupro ao seu criador.

Todavia, a modernidade irrompeu com muitos cristãos filosofando sem que a fé ou a palavra de Deus os intimidassem tanto. Muito pelo contrário. Provar a existência, a perfeição e a infinidade de Deus de modo filosófico de certa forma foi o estopim da modernidade. A prova ontológica de Deus cartesiana é o ícone do casamento perfeito de Deus e o pensamento. Pensar o infinito sem o qual Deus não é passou a ser o desafio da filosofia. A poesia, obviamente, nada podia nessa empresa. Sobreviveu enquanto entretenimento burguês. Porém, tampouco a filosofia se mostrou capaz de dar conta da infinidade.

Então entrou em cena a ciência moderna, que longe de se pautar pela sensibilidade poética, e ciente da impotência dos argumentos metafísicos, se valeu da matemática euclidiana e da física newtoniana para explicar o real infinito. Se restava alguma dúvida de que a filosofia era incapaz de tocar a verdade, Immanuel Kant, na sua Crítica da Razão Pura, deixou isso irreversivelmente claro. O filósofo evidenciou os limites da razão metafísica e estabeleceu que somente a ciência e a matemática podiam tratar das verdades, não obstante ao modo de produzi-las.

Apesar de ter apunhalado definitivamente a metafísica, o filósofo alemão deixou os campos da ética e da política ao encargo dela. Porém, não poderia versar sobre o que válido necessária e universalmente, apenas sobre a dinâmica das relações sociais e dos valores morais, contingentes por natureza. E na sua Crítica da Faculdade do Juízo, a última de sua trilogia, Kant, tratando da beleza, outro lugar não reservou à poesia além de uma contingência particular de pretensão universal, que, entretanto, menos do que a filosofia podia ser verdadeira, isto é, ser considerada conhecimento.

Contra essa herança inglória legada à filosofia por Kant, o filósofo alemão Friedrich Hegel empreende seu contundente sistema de pensamento, cuja pretensão era não deixar nada do que já tenha sido produzido pelo homem de fora. Muitos dizem que Hegel tentou salvar a filosofia. Todavia, sua dialética “espiral histórica” que compreendia todo e qualquer movimento da razão não foi suficiente para tirar da ciência moderna seus cetro e coroa no reinado da verdade.

Outro filósofo alemão, Karl Marx seguiu o caminho hegeliano, todavia modificando o idealismo de Hegel no seu materialismo histórico. Marx, dando sobrevida ao pensar filosófico, revolucionou o pensamento ocidental ao propor que a filosofia não devia apenas seguir interpretando o mundo, como tinha sido feito até então, mas sim modificá-lo. Filosofia = revolução! Foi mais profético do que poético todavia. E, fazendo a crítica da economia política de seu tempo, mais economista do que filósofo aliás. Entretanto, é considerado um dos filósofos mais influentes da história da humanidade.

Foi só com Friedrich Nietzsche, no entanto, que a ciência encontrou resistência à sua confortável exclusividade em relação à verdade. Filosofia e poesia receberam o vigoroso impulso do martelo nietzschiano e foram reapresentadas como expressões capazes de tocar e produzir o real. Para tanto, o filósofo, que na verdade era filólogo, teve de retornar às origens míticas dos antigos gregos para, de lá, intempestivamente, dizer à sua modernidade demasiado historicista que a ciência era mais um vício temporal do que uma virtude sempiterna. A destruição niilista nietzschiana dos fundamentos, que deu cabo da modernidade, não poupou a onipresença e a onipotência científica em função da vida, da vontade de potência que a faz ser, e, o que importa aqui, da poesia e da filosofia.

E o método de Nietzsche para relativizar tanto a ciência quanto a história, chamadas por ele como as prisões da modernidade, valeu-se do impertinente conceito de extemporaneidade que sustentava que devemos sair do nosso tempo, sem no entanto deixá-lo totalmente, para, de outros tempos e com outras perspectivas, tratarmos dos assuntos que nos tocam, trazendo o passado ao presente com uma roupagem que a contemporaneidade ela mesma não conseguiria cozer. E mediante essa extemporaneidade estratégica e libertadora, a poesia e a filosofia puderam reingressar dignamente no pensamento e na expressão humanas.

Com a contemporaneidade a ciência não morreu, obviamente. Porém, a poesia e a filosofia se viram como que revivificadas. Claro, há quem diga que o que realmente estrutura a vidas contemporânea é a ciência mesmo, que não há um espaço ou atividades humanos que não sejam atravessados completamente pelas produções científicas. Não obstante, esquecem-se de que filosofia e poesia outrossim atravessam e constituem todos os espaços e atividades humanas, e cada vez com mais força. Para ver somente ciência, ou até mesmo a primazia dela, há mesmo que se fazer um forte exercício de abstração para desconsiderar as esferas metafísicas e poéticas que envolvem o mundo humano.

Um belo exemplo disso é explicitado pelos próprios cientistas, mais especificamente os físicos quânticos que, superando em muito as fronteiras físicas últimas do átomo, depararam-se com a dualidade partícula-onda na qual ora uma existência é partícula, ora onda; nunca as duas coisas, todavia, sem deixar de sê-las simultaneamente. Cada um desses dois modos existenciais, para esta ciência, se dá de acordo com o modo como observa-se a realidade. Para então poderem falar dessa dualidade intransponível referente às partículas subatômicas, muitos cientistas afirmaram que a física quântica fez desaparecer a diferença entre ciência e poesia.

Slavoj Žižek, filósofo esloveno, segue mantendo aberto espaço para a poesia na compreensão da realidade. Em sua obra A Visão em Paralaxe, o filósofo relembra a invenção renascentista da perspectiva que cartografou com precisão matemática a condição do sujeito moderno. A característica central da perspectiva medievalista era o estabelecimento rígido do ponto-de-vista (o sujeito), e do ponto de fuga (o infinito ao qual todas as paralelas convergem). Com essa apresentação, Žižek prepara o terreno para as imagens contemporâneas evidenciarem algo muito diferente: não mais o estabelecimento de um ponto-de-vista e de um ponto-de-fuga absolutos relacionados inexpugnavelmente, mas, em vez disso, a miríade de pontos-de-fuga e pontos-de-vista, misturados e alheios uns aos outros, todos ao mesmo tempo constituindo a superfície imagética do real.

A pertinência da poesia em respeito ao real que o pensador esloveno quer evidenciar está justamente no fato de que a liberdade do observador em relação ao que vê (resultado virtuoso da crise dos fundamentos; fruto do niilismo nietzschiano), se dá porque que não estamos mais presos a um ponto-de-vista e condicionados a um ponto-de-fuga determinados, mas, em troca, diante de infinitos pontos, que tanto podem ser tomados como sendo de fuga como de vista. Podemos, com efeito, montar tantas relações imagéticas perspectivadas quantas forem as nossas tomadas de pontos de vista e de fuga: poesia que ciência alguma é capaz de produzir ou superar.

Uma vez que a contemporaneidade niilizada dispensa qualquer hipóstase, qualquer substancialização, qualquer absoluto prévio de onde adviria alguma verdade eterna a ser capturada somente pela ciência e doravante deificada, é nessa livre verificação que a nós se apresenta a partir de infinitos pontos-de-vista-e-de-fuga-ao-mesmo-tempo que surge o que podemos, aqui, chamar de verdade, se assim quisermos, ou, ali, dependendo da verve com o qual nosso olhar se lança nesse real, de poesia ou de filosofia.

Considerando as promenade históricas da poesia e da filosofia, em suma: o surgimento da poesia; seu ultrapassamento pela filosofia; a superação delas duas pela ciência; e as suas recuperações pós-modernas; podemos até pensar que esse devires continuam obedecendo à espiral hegeliana. Se é assim, a poesia reinará absoluta novamente até que a filosofia lhe ultrapasse mais uma vez, e, decerto, a ciência supere ambas de novo. Hegel, então, repousaria eternamente em paz no seu túmulo.

Hipostasiar o movimento proposto pelo filósofo idealista alemão, entrementes, seria fazer do passado, melhor dizendo, de um pensamento passado, um claustrofóbico logos para o pensamento futuro. Vício indesejável que, se parece aparentado à virtuosa extemporaneidade nietzschiana, é porque se confunde regra com referencial . O futuro, se livre, não mais hierarquizará poesia e filosofia, mas, provavelmente, aumentará, não só a pertinência de cada uma delas, como também a tensão entre elas duas, a ponto de cada vez mais serem capazes de propor, senão dois ou mais reais, ao menos muitos outros modos de pensar o único que há.

Fontes: https://gz.diarioliberdade.org/opiniom/item/40856-poesia-e-filosofia-ontem-hoje-e-amanha.html

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