07/03/2015

O alemão que amava os gregos e o Sul



Quando começou esta telenovela acerca da opção quase doentia de amor-ódio entre o "je suis Syriza" e o "je suis Merkel", e do suposto antagonismo entre os países do Norte e do Sul, passou na televisão a recordação de um jogo de futebol genial que os Monty Python montaram, há muitos anos, entre os filósofos alemães (Kant, Hegel, etc.), incluindo os escritores, e os filósofos gregos antigos, incluindo os cientistas (Aristóteles, Arquimedes, etc.). Na altura, ganharam os gregos, mas isso não é relevante. O importante é que o confronto retratava, na paródia, dois mundos gigantescos da filosofia ocidental. Ia mesmo a dizer "os" dois mundos, mas arrependi-me a tempo, por me lembrar de uma França que perdurou - em alternativa digna - das "luzes" até meados do século XX.

Há alguns dias, fui pressionado pelo meu filho mais novo a repegar no "Ecce Homo" do Nietzsche. Digo repegar por vergonha, pois acho que, se o li - e acho que sim -, nunca o devo ter feito com a atenção devida. Mas nunca é tarde para emendar os erros passados, e o livro apresenta um interesse inesperado perante a turbulência da nossa Europa contemporânea.

Nietzsche é um filósofo incompreendido e mal-amado. Em parte, por culpa sua. Mas suscita um paradoxo curiosíssimo: muitas almas-penadas do pensar continuam a associá-lo ao germanismo nacionalista, ou mesmo ao nazismo, quando a maior paixão do homem foram os gregos mais antigos e, posteriormente, os franceses menos antigos. É que mesmo muitos dos que reconhecem que a sua proximidade ao embrião do nazismo é ficcionada e tem mão criminosa - ninguém tem culpa das irmãs que tem -, tendem a identificá-lo com um "modelo alemão" que lhe é totalmente estranho, a não ser por pertencer a um monumento filosófico que, temos de reconhecer, foi quase um "assunto alemão" durante vários séculos.

Mas, lendo o "Ecce Homo", encontramos preciosidades destas:
"Quando para mim imagino uma espécie de homem, que se contrapõe a todos os meus instintos, é sempre um alemão que me ocorre."
"Sou estranho a tudo o que é alemão, de modo que já a proximidade de um alemão atrasa a minha digestão..."
"O que é que eu nunca perdoei a Wagner? Que ele condescendesse com os alemães - que se tornasse um alemão imperial... Onde quer que a Alemanha chegue, corrompe a cultura."

Em contrapartida, diz dos franceses o seguinte:
"... é a um pequeno número de velhos franceses que estou sempre a regressar: creio só na cultura francesa e tenho por equívoco tudo o que na Europa se chama "cultura"..."
"Voltaire, em oposição a todos os que depois dele escreveram, é acima de tudo um grand seigneur do espírito: exactamente o que eu também sou."

Mas o seu maior amor foi grego. Nietzsche dedicou-se à Filologia Clássica, antes de ser filósofo. Quer dizer que se dedicou aos textos clássicos, sobretudo os gregos, e os seus dois primeiros livros foram sobre a Grécia antiga. Foi no primeiro, "A origem da tragédia", que criou o célebre conceito de espírito "dionisíaco", que esteve na base de toda a sua compreensão do mundo grego - questionando com violência o racionalismo "socrático" e as tragédias de Eurípedes -, e o acompanhou pela vida fora, como símbolo da vontade de viver e do "dizer sim à própria vida, mesmo nos seus mais estranhos e mais duros problemas", até aos derradeiros anos de suposta loucura, quando assinava as cartas com o nome do deus da sua devoção - Dionysos.

E é assim que, neste livro do que consideram ser o "ideal-tipo" germânico, aparece a sua paixão pelo Sul, e uma das suas frases mais belas:

"Não sei estabelecer diferença alguma entre as lágrimas e a música, não sei pensar a felicidade, o Sul, sem um frémito de temor."

Nietzsche morreu há cento e poucos anos. Se eu tivesse de defini-lo, diria que foi, de entre todos os homens que já viveram, o homem que pensou maior, de forma mais ampla. O mundo que imaginou foi o mais desmesurado que alguma vez existiu. Mesmo o seu Homem foi o mais "além", o mais "elevado" dos homens ("übermensch"). O que, no caso dele, não tem nada a ver com divindades, como todos sabemos. Ora, entristece-me constatar que um século e pouco foi tempo suficiente para este elo grandioso entre o pensamento do Norte e do Sul se partir. Alguém se entreteve a estragar esta harmonia. Não sei por que foi, ou o que aconteceu. Imagino, talvez, a pequenez. Da preguiça ou do poder mundano. Não sei. Mas houve algo que, tristemente, abafou uma hipótese de sintonia espiritual, uma espécie de comunhão superior, que poderia ter perdurado entre os três povos maiores da filosofia ocidental e, por arrasto, ter espalhado a sua grandeza inigualável por todo o espaço europeu.

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