20/01/2015

Daniel Innerarity "Vivemos em sociedades histéricas, epidémicas"

O filósofo afirma que o Podemos se posiciona como "uma marca" e vende aos eleitores a sua "virgindade política"
Filósofo, catedrático de Ciência Política, professor convidado em várias universidades - na Sorbonne e na London School of Economics, por exemplo - Daniel Innerarity é hoje um dos pensadores mais reconhecidos do mundo. Na semana passada, passou por Lisboa e falou com o i sobre os acontecimentos do momento: os atentados de Paris, as mudanças políticas na Europa e a crise económica. Nascido em Bilbao em 1959, Daniel Innerarity é muito crítico do fenómeno Podemos - o partido que neste momento lidera as intenções de voto em Espanha. Diz que o que o Podemos vende ao eleitorado é essencialmente a sua "virgindade política" e acredita que Pablo Iglésias vai decepcionar muito rapidamente. Daqui a três meses vai ser editado em Portugal o seu novo livro - "A Democracia do Conhecimento", em defesa de "uma sociedade inteligente" - onde Daniel Innerarity defende a urgência do conhecimento das humanidades. A crise não teria sido tão profunda se os economistas tivessem estudado também História e Ética, diz.

Vivemos num mundo que não conseguimos perceber. Precisamos de filósofos. Daniel Innerarity, ajude-nos a entender os atentados de Paris.

Precisamos de gente que nos ajude a viver em contextos onde há mais incerteza que em épocas passadas. Não é que nós, os filósofos, saibamos mais do que os outros...

Pensam mais... Onde estava quando foi o ataque ao "Charlie Hebdo"?

Estamos mais acostumados a mover-nos em situações de insegurança e com questões em que as certezas são escassas. No dia dos atentados de Paris eu estava em San Sebastián, onde trabalho, na fronteira com a França. Vivi muitos anos em França, é quase o meu segundo país, tenho lá muitos amigos, estive na Sorbonne. Eu diria que passada a efervescência do primeiro impacto - a contraposição simplificada que se fez entre "nós" e "eles", a "civilização" e "os muçulmanos" - temos de fazer uma certa reflexão e pensar que "nós" estamos bastante divididos. Em França há uma expressão que é o "rassemblement", o reunir-se, como aconteceu na manifestação do dia 11 de Janeiro. São momentos mágicos criados por uma emoção. Mas no dia seguinte temos de voltar às discussões sobre como equilibrar liberdade e segurança. Sobre a manifestação de Paris é possível dizer: "nem éramos todos os que estávamos nem estávamos todos os que éramos". Havia gente que não estava na manifestação - Le Pen e o seu partido e não vou agora entrar na discussão sobre de quem era a culpa - e certos líderes que estavam lá não eram apresentáveis. São companhias que eu não quero ter.

Está a falar de que companhias em concreto?

Estiveram líderes de países onde há jornalistas presos. Putin, Erdogan e os Emiratos... São pessoas e países cuja forma de vida eu não partilho. Depois, fazem- -se muitas simplificações. Fala-se do "mundo muçulmano"como se isso fosse um bloco. Mas estes homens vivem na Europa, movem-se nas redes sociais e acostumaram-se à típica exaltação ocidental da violência nos meios de comunicação social. Eles estão muito mais integrados nas redes sociais do que nos seus lugares de culto, as mesquitas. Uma grande parte deste jovens são conversos, muitos não falavam a língua árabe. E quando vão para a Síria combater, os primeiros a avisar a polícia são os seus pais. Eles são vistos pelos pais como gente que representa uma ruptura face à tradição muçulmana e não a encarnação óptima do muçulmano. Quando eles matam, também matam um muçulmano, como foi o caso de um dos polícias assassinados.

Em 2012, em Toulouse, mataram uma polícia que também era muçulmana. Há uma fractura profunda no interior do mundo muçulmano e não é só entre xiitas e sunitas no Médio Oriente. Penso que cometeremos um erro grave se fizermos uma contraposição entre comunidades...

Cultura europeia versus comunidades muçulmanas?

Essa contraposição não é boa para se perceber o que se está a passar. Os líderes políticos, perante um acontecimento tão dramático como o que se passou, optam pela agitação instantânea, endurecendo as penas, por exemplo. Consideraram o caso um problema de falta de segurança e acham que se resolve com mais dureza. Mas não é um problema que se resolva com mais repressão, provavelmente com mais colaboração, informação...

A maior repressão também condiciona as liberdades europeias de que nos orgulhamos...

Estamos a trabalhar num terreno muito delicado. Seria um triunfo póstumo do terrorismo a fragilização de Schengen e o que significa Schengen para a Europa. De certo modo, já o estão a conseguir. Eu penso que não lhes devíamos dar essa vitória, não a merecem.

Os ministros do Interior dos países europeus já falam em rever Schengen. É já uma vitória?

Quero crer que é uma vitória no plano retórico, não real. Admito que a seguir aos atentados os ministros do Interior utilizem esse tipo de retórica. Mas acredito que a cidadania é maior e entendemos mensagens um bocadinho mais sofisticadas. Não nos deviam tratar como estúpidos. Deviam dizer com clareza que vivemos no mundo que, a respeito destas questões, envolve riscos, e não pôr a solução numa maior repressão e num maior controlo. Este não é um problema que exista por falta de repressão, de castigo. É consequência da nossa incapacidade de dar resposta a partes da população europeia que estão muito desesperadas com a situação social.

Mas não corremos o risco de estar a justificar o terrorismo com a situação social? Uma eurodeputada portuguesa, Ana Gomes, disse que a austeridade fomentava o terrorismo e foi muito criticada.

Vivo num país, o País Basco, onde houve muito terrorismo e não tinha relação com a situação social. Os terrorismos são diferentes. Mas o húmus deste terrorismo jihadista vem de gente com escassas oportunidades de trabalho e marginalização. Isto não equivale a justificar nem explica.

Porque é que nos tocou tanto o ataque ao "Charlie Hebdo" e nos tocou menos o ataque à estação de comboios de King's Cross em Londres? Ou mesmo Atocha? Ou o Boko Haram? Era porque estava em causa a liberdade de expressão, valor fundamental das sociedades europeias? Há um componente emocional a este atentado que não aconteceu noutros.

Eu vivi os atentados em Madrid e a reacção emocional foi muito intensa. Mas aqui penso que há dois factores que explicam: o facto de acontecer na Europa. Há atentados destes em muitos lugares do mundo e muito mais trágicos do ponto de vista do número de mortos. Mas a Europa é um teatro, um lugar onde os acontecimentos têm uma enorme repercussão. E Paris é uma das grandes capitais do mundo.

Mas foi sobretudo por serem jornalistas. Eu não seria tão autocomplacente com a nossa civilização e diria que são os meios de comunicação que amplificam as emoções. Logicamente, se o grémio dos jornalistas - de quem eu gosto muito e a quem devemos muitas coisas - é directamente afectado, isto terá mais repercussão do que se forem juízes ou qualquer outra classe profissional. E tão importante como a liberdade de expressão são as garantias de se ser julgado com justiça.

Nós tivemos terrorismo dentro da Europa até há pouco tempo, a ETA, o IRA, mas eram problemas localizados. Com estes atentados ficamos com a ideia de que a Europa está completamente desprotegida...

Esse tipo de terrorismo era territorial. Dentro da brutalidade que existiu, com o tempo foram-se resolvendo. Com este assunto do terrorismo jhiadista estamos em cenários muito mais amplos. Temos uma incapacidade de reconduzir isto a categorias já conhecidas que limitem o impacto. E sobretudo temos uma absoluta ignorância sobre qual é a contrapartida, que preço seria preciso pagar para resolver ou satisfazer pessoas cuja lógica nos é absolutamente incompreensível. É um inimigo volátil que não podemos vencer com facilidade, que não pode ganhar, mas a quem também não podemos ganhar e com quem desgraçadamente vamos ter de conviver durante um largo tempo. Temos os problemas da Síria e da Palestina....

O espaço público vai mudar na sequência destes atentados? Vamos transformar-nos em gente com medo?

Em geral os espaços públicos estão fortemente submetidos aos vaivéns emocionais e muito desestruturados. Passámos de um mundo com espaços públicos organizados, regulados, hierarquizados a um mundo com espaços abertos, indeterminados, onde os fluxos emocionais discorrem a grande velocidade. A crise económica, por exemplo, é uma reacção de pânico. Tem uma componente emocional que não tem nada a ver com a reacção emocional que houve em 1929. Somos sociedades histéricas, epidémicas. Somos sociedades epidémicas onde as coisas se transmitem a grande velocidade.

A crise aconteceu pela transmissão do pânico em grande velocidade assim como, agora mesmo, o que está a ser contagioso é o medo, em forma de pânico. Antes da crise o que tínhamos era um contágio de confiança excessiva e de emulação. Se um comprava uma casa nova e pedia uma hipoteca, o outro também tinha de comprar. Havia uma borbulha emocional, mas de uma emoção positiva que é a confiança. A crise é a implosão da confiança que se transforma num pânico total.

A confiança era excessiva e provavelmente o pânico que agora temos, a retracção económica, obedece a uma causa real mas temos de buscar essa explicação no facto de como sociedade já nos termos emancipado de enquadramentos nacionais e não conseguirmos um equilíbrio emocional..

Dentro da Europa...

Temos de restabelecer as condições de confiança que são necessárias para que a economia funcione. Eu creio que a austeridade unilateral e sustentada durante tanto tempo mina as relações de confiança que são necessárias para que a economia funcione. Estamos neste vaivém.

E a situação está a minar já o sistema político como o conhecíamos. O Podemos em Espanha, Syriza na Grécia, Marine Le Pen em França. Escreveu a propósito do Podemos que é um choque para o sistema mas que o sistema também absorve os choques.

Em Espanha estão a coincidir vários acontecimentos ao mesmo tempo. Uma prática dos partidos políticos tradicionais que era muito opaca, muito clientelar e pouco atractiva para as pessoas numa situação de crise económica. Isto deu lugar a que um movimento social de indignação cristalize em forma de partido político. Mas quando um movimento social se transforma num partido político entra numa lógica que o fará incorrer em muitas contradições. E já estamos a ver isso. Este novo partido deu-se conta de que o seu grande valor é a virgindade política - não é tanto a ideologia, é a virgindade, porque quem vota neles não conhece o seu programa. Não faz falta terem programa, até porque as pessoas votam neles porque não têm programa. O que o Podemos apresenta é uma recusa do já conhecido e as pessoas votam porque preferem o não conhecido ao já conhecido.

O Podemos está a posicionar-se como uma marca. Em Espanha vamos ter eleições municipais em Maio e no fim do ano legislativas. O Podemos não se vai apresentar nas municipais porque quer chegar virgem às eleições gerais. Têm várias contradições. O líder deste partido falava em "assaltar o céu". E eu pergunto: "O céu é o Palácio da Moncloa?". Num Estado como o espanhol, com tantas comunidades autónomas, com tantos contrapoderes, pensam estes que assaltar a Moncloa seria suficiente para mudar de maneira tão radical a política e a economia do país? Com quem fazer acordos? Com quem da "casta" [é a expressão com que o Podemos se refere aos políticos actuais] vão conseguir acordos para conseguir isso? Eu creio que o Podemos nos vai decepcionar a uma velocidade muito mais rápida do que se imagina.

Sendo Espanha um país da União Europeia há regras que não se conseguirão ultrapassar. Aliás, acha que a Europa ainda é uma democracia?

Duas coisas: a Europa vai continuar a exigir aos países do Sul racionalidade orçamental. Isto só é democraticamente aceitável se houver simetria. Se os países do Sul disserem à Alemanha: aumentem vocês a procura interna. Há um problema na Europa de falta de reciprocidade, de gestão unilateral dos países mais poderosos, económica e politicamente, relativamente aos outros.

Se o Syriza vencer as eleições na Grécia que margem tem para aplicar o seu programa? Zero?

Zero, não. Mas muito pouco. O Syriza não vai fazer uma política muito diferente do que faria um partido social-democrata. Vai tentar renegociar a dívida nas melhores condições. Porquê? Porque sabe que está submetido a uma pressão muito forte que vem do resto da Europa e porque interessa à Grécia sair da crise em condições vantajosas. Uma reestruturação razoável pode ajudar a sair da crise e não seria a primeira. Creio que o Syriza tem inteligência política para se mover nesse cenário complexo.

Alexis Tsipras moderou o discurso.

Há uma lógica que acaba por se impor. Quando um partido político está na oposição adopta uma lógica e uma retórica que tem de ser substituída o mais rapidamente possível quando começa a governar. As sociedades europeias não se deixam governar por extremos, porque há que configurar maiorias.

Portanto é preciso mudar alguma coisa para que tudo fique na mesma, ou mais ou menos?

A política é frustrante porque as sociedades não se deixam facilmente governar nem mudar. Temos de administrar essas frustração. Todos os governos se estreiam com promessas incumpríveis e chocam de seguida com a realidade e têm de procurar a cooperação dos seus adversários. As sociedades não se deixam mudar facilmente, mas há aqui um aspecto positivo: se for eleito um louco, o dano que vai fazer será limitado. Isto impede que os maus façam danos excessivos. As sociedades têm uma inércia que as faz serem dificilmente maleáveis. Às vezes para bem, outras vez para mal.

Fala muito da despolitização dos cidadãos. Estamos mais afastados da política do que nos anos 70, 80?

É cedo para fazer a história da despolitização. O fenómeno do Podemos e do Syriza e as reacções à crise económica provam que havia um recurso de politização que se activou. Provavelmente o que se está a passar é que a sociedade se indigna, paralisa obras públicas... mas as sociedades têm de ser capazes de configurar futuros políticos com certa coerência. Não é simplesmente dizer não. Em Espanha houve uma campanha para parar os despejos dos que não conseguiam pagar os empréstimos das casas. Mas é preciso dar outro passo mais: é preciso que o crédito flua, conseguir que as pessoas tenham créditos favoráveis. Eu posso parar uma auto-estrada, mas tenho de fazer uma proposta sobre infra--estruturas. Não podemos converter as sociedades democráticas em meras somas de protestos desarticulados sem nenhuma coerência política. É preciso dar coerência política aos protestos.

Mas as pessoas hoje odeiam os políticos de uma forma que não acontecia há 20 anos.

Passa-se o mesmo em todos os países da Europa. Há uma parte que é a de que os políticos funcionam como os treinadores de futebol. São elementos que permitem que a ira se exprima, são bodes expiatórios que fazem falta. Mas há uma anedota que diz que quando as autoridades ferroviárias descobriram que os acidentes afectavam sempre o último vagão dos comboios e tomaram a decisão de suprimir o último vagão... Suprimamos a classe política! Haverá outra classe política. Sempre haverá representantes políticos. Podemos exigir-lhes mais honestidade, mas sempre haverá alguém que represente e alguém que seja representado. A reacção contra a classe política tem uma parte lógica, que tem a ver com uma reacção contra as más práticas e outra parte que é autodestrutiva e paradoxal. Voltando ao que se está a passar em Espanha e à oposição "casta-gente". Quanto tempo é que vai demorar o Podemos a converter-se em casta? Ainda não estão no governo e já suscitaram pequenas decepções junto do seu eleitorado. A política é uma actividade de grande desgaste, os líderes desgastam-se muito rapidamente. O tempo que demora até um líder decepcionar é muito breve. E não tem a ver nem com a direita nem com a esquerda.

Escreveu há pouco tempo contra a mercantilização do saber, o saber agora só interessa quando pode ser comprado por uma indústria. O nosso século XXI fez uma mudança nesse sentido?

Daqui a dois ou três meses sai em Portugal o meu livro "A Democracia do Conhecimento - por uma sociedade inteligente" [prémio Euskadi de Ensaio 2012, já traduzido em inglês e alemão] e aí há uma reivindicação dos saberes aparentemente inúteis como são as Humanidades e as Ciências Sociais, que aparecem agora numa posição de desvantagem porque não têm uma rentabilidade imediata. Mas temos um exemplo presente: a crise económica, em parte, foi causada por um pensamento económico muito especializado e muito restritivo que deixou de entender a economia como mais uma das ciências sociais, vinculada à História, à Ética, à Política. E passaram a vender-nos uma promessa totalmente ilusória de exactidão. Pessoas que não tinham nenhuma memória histórica, que não sabiam nada sobre as crises anteriores, que não estudaram ética e ciência política ao mesmo tempo que economia, venderam-nos a promessa de que havia uma fórmula económica obtida nas inovações financeiras.

Das muitas coisas que temos de recusar, agora com a crise, é este modelo de ciência económica que foi dominante, uma ciência económica muito especializada e muito prometedora de uma exactidão que não estava em condições de proporcionar. Isto terá de nos conduzir a outro tipo de ciência económica mais relacionada com os saberes humanísticos, menos orgulhosa e mais consciente da sua inexactidão.

Até porque falharam. Mas eles não acreditam que falharam.

A ciência económica dominante nestes últimos anos tem sido uma ciência económica orgulhosa de uma exactidão de que não dispõe. Outros saberes, outras ciências, disciplinas, têm sido mais modestas. Eu acredito na virtude da modéstia. Estamos a pagar os erros de muitos pretensos especialistas e esse falhanço é especialmente irritante.

A modéstia já foi um valor mas deixou de o ser...

É um valor objectivo, o saber que não sabemos muito, que não há soluções mágicas para muitos problemas, que precisamos dos outros para combater juntos a complexidade do mundo, que temos de lhes pedir que nos ajudem. Precisamos de uma abordagem mais policontextual dos problemas e não tanto unilateral.
Fontes: http://www.ionline.pt/artigos/mundo/daniel-innerarity-vivemos-sociedades-histricas-epidmicas/pag/-1

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