26/01/2015

Religião para ateus

A intelectualidade do mundo Ocidental se alvoroça em análises aprofundadas sobre os antecedentes e consequentes da tragédia do Charlie Hebdo. Aproveita para criticar o papa Francisco porque concorda que é “normal” dar um soco em quem ousar ofender a mãe. O chefe da Igreja ainda puxa a orelha dos católicos que proliferam feito coelhos. Esquece-se que o clero insiste na arcaica “tabelinha do Vaticano”, de dias férteis e inférteis, com tantos métodos contraceptivos mais eficientes. No Brasil, o ministro das Minas e Energia, Eduardo Braga, invoca o surrado “Deus é brasileiro” para resolver problemas da desídia do governo em planejar o suprimento da demanda de eletricidade. “Deus proverá”, mandando chuva e humidade para normalizar o nível das represas. “A César o que é de César”, disse Jesus, justamente para separar o que é de Deus dos aspectos políticos deste mundo. 
O filósofo francês André de Botton, escreveu um livro chamado Religião para Ateus (Ed. Intrínseca) onde essa postura é resumida num mote – “eu mesmo não acredito, mas, do ponto de vista político, é mais prudente que você acredite”. É desanimador saber que filósofos desde Maquiavel ao contemporâneo Habermas compartilham a descrença nos dogmas religiosos, mas, ainda assim, consideram que a religião é útil para manter sob controle o populacho. A meu ver, uma forma contraditória de pensar por aqueles que, enquanto filósofos, deveriam zelar pela integridade do intelecto. Outro filósofo, mais pé no chão, Jacques Derrida (1994) procura pôr ordem na casa ao discriminar religião e ética, erroneamente colocadas no mesmo pote. 
A maioria das pessoas pensa que os valores mais elevados da humanidade – o amor, o respeito ao outro, a abdicação da agressividade, o desejo de estabelecer a paz na comunidade – estão depositados e resguardados na religião. Por esse motivo, qualquer crítica que se lhe faça é entendida como um ataque a esses valores fundamentais para a civilização. Ao não se discriminar o que é próprio da religião e o que é próprio da ética, conclui-se apressada e erroneamente que o não religioso, o ateu, é um ser aético e antimoral. Derrida mostra que não é bem assim. A fé e o sagrado não são exclusivos da religião. Em primeiro lugar, se entendemos a religião como prática ligada ao trato com o divino e suas revelações, logo percebemos que a fé não se restringe a esse campo. A fé se faz imprescindível em qualquer contato entre os homens. É preciso ter fé no outro, é preciso crer no que ele diz, acreditar que ele fala a verdade. De forma semelhante, o sagrado também não se limita ao divino, pois a consideração à vida e ao outro deve ter essa conotação. A vida, diz Derrida, é algo que deve permanecer “sã, a salvo, intocável, sagrada”. 
Desde o Iluminismo os cientistas fazem distinção entre fé e razão, como formas incompatíveis de pensar. Derrida afirma o contrário. É justamente por ter fé na palavra do outro que a transmissão do conhecimento se faz possível. Qualquer relação humana se baseia na possibilidade de aliança com o outro, na crença de ouvir dele a verdade e, em retribuição, obter do outro também a verdade. O que Derrida propõe é que aquilo que aparece simbolizado, idealizado e “purificado” na religião, e que se acredita ser específico dela, na verdade são aspectos essenciais das relações dos homens. Aponta para uma religião “não religiosa”, fruto das necessidades humanas. 
Muitos pensam que a ética decorre de preceitos religiosos. Seria ela uma depuração leiga dos mandamentos divinos. Entretanto, Freud mostrou que a ética decorre de procedimentos humanos necessários para a sobrevivência. Cada um de nós deve conter a sua sexualidade, sua agressividade para que seja possível a convivência em comum, para que o grupo social sobreviva. No correr do tempo, essa contenção se codifica em normas de conduta que regem as relações humanas. A natureza humana da ética nos possibilita ter uma ideia do trajeto percorrido pela humanidade e do estágio que atingimos – desde as hordas dos primatas às nossas sociedades mais complexas. Isso nos dá forças para continuar melhorando um projeto jamais acabado, em permanente processo de aprimoramento. Vivemos momentos em que dogmas diferentes entram em conflito e o fundamentalismo religioso substitui a ideologia. Esse choque gera violência, instala-se a intransigência e a intolerância. A ética socrática, velha de 2.400 anos, é mais que do que necessária.

O autor é jornalista e articulista do JC
Fonte: http://www.jcnet.com.br/editorias_noticias.php?codigo=237339

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